Para começo de conversa...
Foto: Freepik/Diário D'Aldeia
Sejam bem-vindos (as) ao Diário D'Aldeia. Começo compartilhando um dos contos de meu primeiro romance, "Contos de Vila da Graça". Boa leitura!
Com amor, Papai Noel
Euzébio Silva era o tipo de revolucionário silencioso, que
acreditava muito mais no poder de mudanças causadas por uma ação, do que no
confronto e no conflito dos debates acalorados. Para ele, essa coisa do
discurso idealista acabava ficando só no campo da retórica, semeando discórdia
no lugar da união, necessária à transformação da sociedade para melhor. Até nas
conversas com sua eterna enfermeira e esposa, Ana Nery, costumava dizer que a
comunidade está cheia de pessoas que provocam mudanças, apenas fazendo o que
acreditam ser o certo, sem dizer uma palavra. Ele via essas características
todas em seu melhor amigo, seu Paulo, o porteiro aposentado com quem costumava
secar uma térmica de chimarrão todos os finais de tarde.
Fazia duas semanas que Euzébio vinha até a praça da parte
alta da cidade, acompanhado da térmica grande e da cuia de chimarrão. Todos os
dias se sentava no mesmo banco e sorvia um mate atrás do outro, enquanto olhava
para o outro lado da rua principal, esperando que seu amigo aparecesse, caminhando
a passos largos e com aquele sorriso de quem trazia muitas histórias para
contar. Foi na tarde do segundo domingo de espera que a ficha começou a cair. O
velho amigo de muitas histórias não viria mais para matear. O entardecer ficou
vazio sem seu personagem principal. Mesmo sem uma formação acadêmica, seu Paulo
tinha o dom de pintar a vida de forma pitoresca, como uma tela rica em cores e
imagens frescas, do dia. Essa arte era fruto de uma observação que para os
demais mortais parecia minuciosa. Para ele era apenas rotina. Tinha o dom de
ver a movimentação do casal de João-de-Barro construindo sua nova morada em uma
travessa da antiga estação, ainda que não faltassem árvores na volta. Era um
homem que parecia conectado aos universos comuns que cercavam o dia a dia de
qualquer pessoa ou ser vivo que habitasse a pequena cidade.
Recordar essas histórias, que não seriam mais contadas por
seu autor, era o que fazia lágrimas de saudade escorrerem pela face de Euzébio,
bancário quase cinquentão, aposentado precocemente, pai do Joel, 18 anos, e do
Jorge, 19, ambos acadêmicos de Medicina, agora morando na capital, mais perto
da universidade. Além das boas histórias, naquele melancólico entardecer de
domingo, Euzébio relembrou que o velho amigo se vestia de Papai Noel a cada
final de ano, decidido a tornar mais doce o Natal da criançada, fosse qual
fosse sua condição social. Fazia isso distribuindo balas e pirulitos,
acompanhados de sorrisos e conselhos, como “seja bonzinho e obedeça ao papai e
à mamãe, que na noite de Natal eu trago os presentes”.
Foi a partir desta doce lembrança que Euzébio resolveu
manter viva a simples ideia, como uma homenagem a seu amigo tão rico de
atitudes. A partir daquele domingo ia se preparar para ser o novo “Bom
Velhinho”, aproveitando o tempo e os contatos que tinha com a comunidade em
geral. Decidido, levantou-se do banco e foi para casa em busca de caneta e uma
caderneta onde pudesse fazer anotações para desenvolver melhor a ideia.
Pensando, lembrou que a agência local dos Correios todo ano recebia centenas de
cartas da criançada endereçadas a Papai Noel, no Polo Norte. Riu sozinho ao
pensar que Noel poderia se mudar para a pequena cidade por um mês e meio e
receber estas cartas pessoalmente, em sua própria casa, na praça principal,
rodeada pelas luzes e a magia do Natal. Isso poderia ser anunciado pelo
Jornaleco, nome carinhoso do semanário que trazia as principais notícias de
Vila da Graça, todas as sextas-feiras. Claro que ia precisar de ajuda e foi
pensando nisso que procurou Elizete, secretária da Associação Comercial. Ela
ouviu Euzébio e se apaixonou pela ideia. Disse que ia apresentar para o
presidente João Carlos naquela mesma hora. Ele era dono da loja de materiais de
construção e como estava sempre muito ocupado, ouviu a ideia apresentada por
telefone com toda a atenção que o momento requeria. Aprovou prontamente e
encarregou a secretária de cuidar de todos os detalhes.
Nas mãos do Tito, um artesão habilidoso, a Casa do Papai
Noel, na verdade um sobrado muito confortável, saiu do papel e ganhou um espaço
especial na Praça Dom Ernesto, em frente à Igreja Matriz de São Sebastião
Mártir. Como a maioria das casas da cidade, a do “Bom Velhinho” ganhou uma
elegante caixa de correio, para receber as cartas com os pedidos de presentes
da criançada. A maioria era entregue por um carteiro, mas apareceram centenas
de cartinhas que os pequenos mesmo resolveram colocar lá, diretamente. Naqueles
45 dias que faltavam para o Natal, todas as noites Euzébio vestia as roupas de
Noel e ia para seu endereço temporário na praça. Chegava ali pelas 18h e ficava
lendo as cartas até perto das 20h, quando as famílias começavam a chegar.
Sentado em sua cadeira no primeiro andar, junto a uma bem decorada árvore de
Natal, posava para fotos com crianças e adultos. O passo seguinte era uma
visita ao segundo andar da cabana, onde ficava o quarto do Papai Noel, com cama
e tudo, como se ele realmente morasse ali. Por último, antes de sair, os pais
escolhiam uma carta para ler e se emocionavam com os pedidos feitos com
simplicidade pelos remetentes. Virou cena comum pessoas com lágrimas nos olhos
colocarem no bolso cartas lidas momentos antes, desejosas de atender pedidos
diversos.
Nem todas as crianças pediam brinquedos. Foram muitos
pedidos de crianças para que suas famílias pelo menos tivessem o que comer na
noite em que todos celebrariam o nascimento do Menino Jesus. Aquele foi o Natal
mais solidário que Vila da Graça já tinha visto. No Jornaleco, a cada semana
algumas cartinhas eram selecionadas e publicadas buscando algum coração
disposto a um ato de solidariedade para com aqueles pequenos. Havia pedidos que
buscavam soluções para o ano inteiro, no lugar de apenas uma noite de
encantamento, como o feito por Isabela, de oito anos:
“Queria que meu pai e minha mãe não
brigassem mais. Eles sempre brigam porque ele não consegue trabalho e aí minha
mãe sempre chora”.
Quem pegou a cartinha da Isabela foi o Jessé Sales, dono da
madeireira. Ele e sua esposa, Margarete, não tinham filhos. Sem falar nada,
saíram rápido e só voltaram à praça mais de uma hora depois. Ficaram ali por
perto, tomando chimarrão, até que as visitas à casa de Noel fossem encerradas,
naquela noite. Euzébio ficou surpreso ao vê-los entrarem com um envelope
endereçado à Isabela. Explicaram que estavam presenteando a pequena com o
emprego que o pai tanto necessitava e lhe pediram que fizesse a gentileza de
entregar a carta com a resposta de Papai Noel, logo na manhã seguinte. Ele
concordou em ajudar o casal e cumpriu a promessa. Cedo, foi até o endereço,
colocou a carta embaixo da porta e tocou a campainha. Antes que alguém
atendesse, saiu rapidamente, entrando no primeiro beco à esquerda da moradia. O
pai de Isabela atendeu e percebeu o envelope no chão. Abriu a porta e não viu
ninguém, mas notou que o remetente era Papai Noel. Achou tão engraçado, que
chamou a esposa e a filha para compartilhar o que imaginava ser apenas uma
brincadeira. Na presença das duas, abriu e começou a ler:
“Querida Isabela, quero que tenha um ótimo
Natal. Por isso, estou respondendo seu pedido com urgência. Seu pai deve se
apresentar o mais rápido possível na Madeireira Sales...”.
Tomado pela emoção, o homem nem conseguiu terminar a
leitura, completada pela esposa entre lágrimas de alegria. Os três se abraçaram
apertado antes daquele pai sair para o endereço indicado e confirmar que tinha
mesmo um novo emprego, faltando 40 dias para o Natal. No final da cartinha, a
surpresa: “Com amor, Papai Noel”.
Naquela noite, Euzébio anotou a experiência em seu Diário de
Papai Noel:
Comentários
Postar um comentário