O cavalo do Neco Pedroso

Encerrando setembro, o Mês do Gaúcho, como humilde contribuição à vasta cultura do Rio Grande do Sul, compartilho este conto, escrito com carinho, em um momento inspirado, aqui ilustrado pela arte de nossa Rainha dos Pinceis e das Telas, Zelia Marangoni.

O cavalo do Neco Pedroso

Os antigos contavam histórias para ilustrar como a vida funcionava. Como se fosse um ritual, elas eram passadas nas rodas de conversa das noites de lua cheia, quando adultos e crianças se reuniam à luz do fogo de chão. Foi numa dessas, quando era garoto, que ouvi meu tio Horácio contar sobre o cavalo de seu tataravô, Manoel Pedroso, mais conhecido como Neco.

Nos tempos em que o Pampa era um só país, antes que fundassem esse nosso Brasil, o Manoel Pedroso se despediu do pai, Francisco dos Santos Pedroso, estancieiro lá para os lados do Paraná, decidido a se mudar para a Província de São Pedro, primeiro nome do estado do Rio Grande do Sul. Ao ver que ele não mudaria de ideia, o velho abraçou o filho e lhe deu sua bênção. A mãe, Maria Catarina, derramou lágrimas, mas desejou que Neco fosse feliz na nova morada. Acompanhado de três peões da fazenda, uma tropa e mais um potro presenteado pelo pai, ele partiu para seu novo lar.

Um mês depois, já estabelecido em uma sesmaria perto das Missões, batizou o potro crioulo com o nome de Mercado. Até ali, o bicho nunca tinha sido encilhado e estava acostumado a andar solto pelo campo. Neco achava bonito vê-lo dar pinotes e carreiras pela vastidão de pasto que se perdia no horizonte. Os peões riam junto com o patrão, mas algum tempo depois o cavalo cresceu e ficou muito forte. Não aceitava sela nem corda. Os melhores domadores foram desafiados a ensinar um pouco de modos para aquele bicho. Nada conseguiram. Seus coices e mordidas impediam qualquer um de se aproximar. Suas esquivas eram ágeis demais e evitavam que fosse laçado. Dormia no campo, como um selvagem. Em pouco tempo emprenhou todas as éguas da fazenda, de forma que Neco ficou contente por ter aquela estirpe rude se misturando com a de animais mais dóceis. Talvez assim sua tropa crescesse forte como Mercado, para enfrentar as agruras daquelas terras.

Um dia Neco estava em frente à sede da fazenda, provando as maçãs de um cesto presenteado por um compadre. De repente, resolveu assobiar para Mercado, enquanto lhe mostrava uma das maçãs. Ele relinchou e pela primeira vez se aproximou do patrão, ainda meio temeroso e arisco. Mesmo assim, cheirou e de uma bocada só comeu a fruta. Relinchou e deu um galope rápido pelo campo para mostrar o quanto estava feliz. Neco ficou observando, pegou outra maçã e assobiou novamente. Mercado voltou imediatamente, em uma carreira desabalada até onde Neco estava. Parou repentinamente e esperou até receber outra maçã, mas desta vez não fugiu correndo como antes. Ficou ali perto, trotando como se fosse domado. Neco se sentou no toco de madeira usado como banco, curioso com a reação do cavalo. Para aumentar o espanto dele, Mercado veio até perto de onde estava sentado e deitou-se a seu lado, feito um cachorro. Apenas balançou a cabeça de leve quando recebeu um carinho na cabeça. Os dois ficaram ali quietos, até a hora de começar a lida, como se tivessem acabado de celebrar um acordo. Os peões assistiam à cena e pareciam evitar qualquer comentário, com medo de espantar o bicho. Perplexos, viram que ele permaneceu imóvel até o momento em que o patrão se levantou e foi ao galpão buscar os arreios. Ao voltar, Mercado estava de pé, imóvel, no mesmo lugar. Deu apenas um relincho para Neco quando este o encilhou. Todos esperavam que ele tentasse morder o patrão ao receber o freio, mas novamente se enganaram. Os homens se prepararam para laçá-lo assim que começasse a corcovear, caso Neco fosse montá-lo. Outra vez, nenhuma reação. Mercado obedecia a cada comando, embora nem esporas o patrão estivesse usando. Desde aquele dia, se comportou com um garanhão domado, ainda que continuasse dormindo no campo. As maçãs eram seu ponto fraco e por causa dele a propriedade acabou sede de muitas histórias.

Uma delas saiu dos limites da sesmaria e se espalhou por toda a região. Diziam que Neco Pedroso tinha dominado o mercado – assim mesmo, com letra minúscula. Os mais próximos sabiam que se tratava de um cavalo, mas a cada vez que era contada, alguns exageros aumentavam o tamanho da proeza. Não demorou para nascer uma lenda com reflexo positivo sobre os negócios. Diziam que o Neco tinha coberto sua manada de éguas com um garanhão selvagem e que alimentava toda sua tropa com maçãs, além do pasto abundante em suas terras.

Dali está nascendo uma linhagem de cavalos que vai dominar o Pampa diziam alguns nas conversas das bodegas, lotadas nas noites geladas de inverno.

Verdade é que o Neco acabou dono da maior manada de cavalos já vista naqueles campos. Além dos bois que criava e vendia, tornou-se o principal fornecedor de montarias, até mesmo para o exército imperial. Oficiais vieram do Rio e de São Paulo para fazer negócios com o homem que, segundo foram informados, dominava este mercado no Sul do País. Neco nunca negou nada a respeito daquela história. Como dizem: quem cala, consente. Por vezes, se pegou rindo sozinho daquela fama toda, que tinha trazido tanta riqueza para ele, um simples tropeiro em busca de um lugar ao sol naquela sociedade campesina que começava a se estabelecer. Muitas vezes lhe perguntaram qual seu segredo para prosperar tão rápido em atividades como as que mantinha, como controlar uma fatia tão grande do mercado.

O Mercado é um cavalo selvagem. Trata bem quem o respeita, mas é capaz de humilhar e surpreender os que se julgam senhores da ciência da doma. Jamais aceita imposições, mas é capaz de maravilhas costumava responder, sempre se referindo ao garanhão crioulo que montava.

No entanto, quem ouvia a conversa interpretava de outra forma, como se ele estivesse falando de maneira figurada sobre o mundo dos negócios. Um belo dia chamaram o Neco Pedroso para um encontro de notáveis. Do alto de sua simplicidade e poucas letras concordou em participar, com uma cara sisuda que mais parecia prenúncio de temporal ou de briga. Por dentro estava gargalhando, pelo inusitado da situação. Na data marcada, acordou cedo, tomou banho e pediu ajuda do Tião, escravo fugido que encontrou liberdade em suas terras, para aparar a barba. Os homens riram do jeito almofadinha do patrão naquela manhã. Nem ele conseguia evitar o riso diante do novo visual.

No dito encontro, realizado na Estância do Seival, foi recebido no fim da tarde, depois de longa viagem no lombo do Mercado, por uns cinquenta intelectuais e pelo coronel José Olímpio Serra, dono da sesmaria. Se portou como um deles, para aproveitar ao máximo a glória inesperada. Atento como era, percebeu logo que a conversa era sobre negócios e que o tinham por um expert, embora não passasse de um simples estancieiro. Imaginou que se as histórias espalhadas pelo povo tinham levado aqueles homens a essa conclusão, sem que ele nunca tivesse sequer cogitado ser um negociante de renome, talvez falar sobre o que melhor entendia fosse a melhor saída e tivesse o mesmo efeito. Então falaria sobre o Mercado, seu estranho e indomado cavalo.

Meu amigo coronel Olímpio e convidados, meus sinceros cumprimentos. Estou deveras agradecido pelo convite que me foi feito para falar sobre o Mercado, nesse Pampa onde todos temos dado o melhor de nós para sobreviver começou Neco.

De forma breve, contou sobre sua origem lá para os lados de Paranaguá e das negociações com os índios, a fim de se estabelecer em sua Estância das Pedras. A história de sacrifícios e lutas manteve todos atentos. Muitos faziam anotações, na tentativa de entender melhor como um ambiente inóspito tinha forjado um homem de visão comercial acima da média, pelo menos na opinião deles. Neco Pedroso se descobria naquele momento um homem de sorte e de talento para falar em público, mesmo sem acreditar que esse ato fosse lhe render dividendos futuros. Dizia para si mesmo que o melhor resultado era a diversão e satisfação pessoal que a conversa lhe proporcionava. Pela atenção que lhe davam, notou que o julgavam um fenômeno a ser estudado. Vieram para aprender com aquele homem rude que em sua análise, se revelava um mestre de negócios. Depois de meia hora falando para a plateia ávida por aprender algo novo, resolveu que era melhor não abusar da oportunidade e fazer algumas recomendações. Ao anunciá-las prometeu para si mesmo que falaria unicamente sobre seu cavalo. Deixaria que eles interpretassem seus conselhos como quisessem e caso tivessem perguntas, responderia com a mesma simplicidade de sua narrativa até aquele ponto.

Senhores, outra vez agradeço a consideração. Foi com trabalho duro, confiança em Deus e respeito pelo próximo que enriqueci nesta terra. Aos que quiserem trilhar o mesmo caminho, deixo minhas dez recomendações: 

1) O mercado é um cavalo selvagem.

2) Come o que quer, quando quer e se quiser.

3) Dorme onde e pelo tempo que quiser.

4) Não aceita encilha, nem ser montado.

5) Se quiser controlá-lo, dê a ele uma maçã e um carinho de vez em quando.

6) O Mercado é totalmente infiel. Então não permita que ninguém dê mais maçãs ou carinho a ele do que você.

7) Plante macieiras em abundância e reserve tempo para cuidar do Mercado.

8) O Mercado sempre dita as regras de como você se relaciona com ele.

9) Jamais desafie o Mercado. Você vai cair do cavalo e talvez não se levante mais.

10) O Mercado é seu amigo enquanto sentir que pode confiar em você. Então não viole essa confiança pontuou Neco Pedroso.

Acabou aplaudido de pé, por todos. O coronel Olímpio tomou a palavra em seguida e colocou o palestrante ao dispor de todos para uma rodada de perguntas. Um clamor de que tudo tinha ficado muito claro se ouviu na plateia e parecia que ninguém tinha dúvidas.

Como o senhor, simples estancieiro, chegou a essas conclusões que nos parecem tão sábias e simples de aplicar em negócios de todos os setores, embora tenha nos falado de uma forma tão figurativa sobre o mercado?perguntou Ernesto Manoel de Sales, emissário da Coroa Portuguesa.

Neco Pedroso olhou para o homem, que de todos parecia ser o menos crédulo. Decidiu ignorar as suspeitas que ele parecia ter lançado sobre suas declarações e como resposta, continuar falando de seu cavalo.

Respeitável emissário Del Rei, reconheço que sou um simples homem do campo, com muito orgulho de minhas atividades, embora tenha recebido boa educação formal durante a adolescência, na casa de meu pai. Se me permite, seguirei falando de forma figurativa como o senhor bem disse. Cheguei a estas simples conclusões por pura observação. O Mercado acorda todos os dias com o nascer do sol. Eu nunca sei como ele vai se comportar, a menos que fique de olho nele. Então, sigo cuidando de todos os afazeres da estância sem desviar minha atenção por um minuto que seja. Há anos que cultivo meu pomar cheio de macieiras. Tenho estoque suficiente para acalmar esse cavalo nos dias em que está de mau humor. Nunca sei o suficiente sobre ele, porque seu temperamento é quase sempre instável e imprevisível. Mesmo quando tudo parece estar bem, não me descuido. Se me descuidar, perco meu cavalo e outro qualquer pode virar dono do Mercado. Além das evidentes perdas financeiras, ainda estou sujeito a perdas emocionais devastadoras, porque me afeiçoei a ele. Desde que conquistei o Mercado, posso dizer que durmo sempre com um olho aberto resumiu o campeiro.

Novos aplausos encheram o imenso salão de festas da Estância do Seival e assim a reunião foi encerrada. Nas rodas de conversa que se formaram antes do jantar ser servido, Neco percebeu haver muitas interpretações do que tinha falado, mas nada que chegasse à verdadeira origem de suas considerações. Entre aqueles notáveis, cada um estava mais preocupado em defender suas teorias sobre a fala do palestrante, do que sobre seu real significado. A comilança terminou tarde da noite e ele resolveu que ia cavalgar sob o luar, depois de agradecer o convite do coronel Olímpio para que passasse a noite em sua casa. Ele também era estancieiro e entendia que como campeiro, seu convidado com certeza se sentiria melhor dormindo sob o próprio teto. Então não insistiu.

Boa viagem, meu sábio amigo. Volte quando quiser. Minhas portas estão sempre abertas para uma boa conversa, como a de hoje. Foi um prazer. Que bela montaria a sua. Como é o nome dele? perguntou o dono da casa, ao se despedir.

Muita consideração da sua parte, coronel. Sou um simples estancieiro e só falo daquilo que conheço bem. O nome dele é Mercado... É um caso que estou estudando faz tempo, mas é surpreendente, isso lhe garanto. Buenas noites se despediu Neco, já montado, antes de desaparecer a galope na estrada banhada pela luz da lua.

O coronel Olímpio acariciou o cavanhaque e começou a gargalhar. Para ele ficou claro que Neco Pedroso estava o tempo todo apenas falando de seu cavalo. Agora imaginava o quanto seu novo amigo devia ter se divertido ao falar para aquele grupo de notáveis e seguia rindo sozinho. Recapitulou mentalmente os dez conselhos de Neco e considerou que até poderiam fazer a diferença se aplicados aos negócios.

“Eu é que não vou estragar a alegria do meu amigo, contando para essa turma qual é o nome do cavalo dele. Que sigam pensando em suas recomendações como figurativas e gastem a cachola para desvendar os mistérios dessa nossa conversa de hoje”, pensou com seus botões, ao voltar para dentro de sua casa, ainda rindo muito de sua descoberta. (Este conto foi extraído do livro “Contos de Vila da Graça”, romance em e-book escrito e publicado por Claudio Oliveira em maio de 2022, via Clube de Autores).

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