O significado da chuva
Pois bem, os eventos que se seguiram a 27 de abril de
2024 no Rio Grande do Sul rasgaram em pedacinhos minha poesia de vida sobre a chuva.
Lembrei da narrativa bíblica do dilúvio da época de Noé, quando choveu por 40
dias no mundo todo e a terra foi totalmente coberta pelas águas. Só então
comecei a entender o verdadeiro sentido de catástrofe, porque o meu Estado, melhor
expressão de mundo que eu conheço, estava ficando embaixo d’água. Não eram
campos verdejantes que estavam sendo inundados, mas as casas das pessoas. Sua
vida, suas empresas e empregos, seus sonhos, seus pets, os brinquedos das
crianças, todos se afogando nessa versão gaúcha de dilúvio. Enquanto os dias passavam
e a chuva continuava, minha alma foi ficando encharcada e o que antes era “canção
de ninar” virou motivo de preocupação, de insônia e estarrecimento. Hoje, mais
de 30 dias depois, enquanto móveis e utensílios viram entulho na frente do que
sobrou das casas, caminho de coração partido por ruas enlameadas, procurando
ajudar os atingidos pelo aguaceiro que não entrou pela minha porta, junto com
outros milhares de voluntários.
Por enquanto só podemos acolher, arrecadar doações, ajudar a limpar o que sobreviveu à inundação. O verdadeiro significado de reconstrução pode ser um conceito novo, com o qual teremos que nos habituar nos próximos dias, meses e anos. Talvez estejamos pagando a primeira parcela dos males que causamos ao meio ambiente. Precisamos mudar, tentar recuperar ou remediar o que fizemos, mas eu não sei como isso pode ajudar a dona Maria, de 75 anos, que construiu seu cantinho onde conseguia pagar as prestações, faxina por faxina, durante a maior parte da vida. Ela viu sua casa ser levada pelas águas e agora não tem onde morar, nem forças para recomeçar. A propaganda dos gestores públicos é forte, mas poderá devolver a esperança para quem nem acredita mais em política? Poderemos resgatar o real significado dessas duas palavras, esperança e política? Se conseguirmos, talvez possamos construir uma nova casa para dona Maria chamar de lar, antes que o inverno e mais chuvas cheguem à porta do ginásio de esportes onde ela segue acolhida. Para este gaúcho, o gotejar da chuva deixou de ser romântico, muito menos poético, pelo menos por enquanto.
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