O significado da chuva


 Nasci em 1962, em um lar simples, cercado de livros, histórias e fantasias sobre a maior parte das coisas. Palavras como catástrofe, tragédia e devastação eram apenas parte do meu vocabulário para descrever coisas que nunca havia presenciado e por isso, difíceis até de imaginar. Lembro de minha visão romântica e poética da chuva, que molhava os campos para produzir alimento. Seu som durante as noites vinha acompanhado daquele cheiro de terra molhada, que muitas vezes foram elementos de uma cantiga de ninar imaginária, a embalar o meu sono de criança.

Pois bem, os eventos que se seguiram a 27 de abril de 2024 no Rio Grande do Sul rasgaram em pedacinhos minha poesia de vida sobre a chuva. Lembrei da narrativa bíblica do dilúvio da época de Noé, quando choveu por 40 dias no mundo todo e a terra foi totalmente coberta pelas águas. Só então comecei a entender o verdadeiro sentido de catástrofe, porque o meu Estado, melhor expressão de mundo que eu conheço, estava ficando embaixo d’água. Não eram campos verdejantes que estavam sendo inundados, mas as casas das pessoas. Sua vida, suas empresas e empregos, seus sonhos, seus pets, os brinquedos das crianças, todos se afogando nessa versão gaúcha de dilúvio. Enquanto os dias passavam e a chuva continuava, minha alma foi ficando encharcada e o que antes era “canção de ninar” virou motivo de preocupação, de insônia e estarrecimento. Hoje, mais de 30 dias depois, enquanto móveis e utensílios viram entulho na frente do que sobrou das casas, caminho de coração partido por ruas enlameadas, procurando ajudar os atingidos pelo aguaceiro que não entrou pela minha porta, junto com outros milhares de voluntários.

Por enquanto só podemos acolher, arrecadar doações, ajudar a limpar o que sobreviveu à inundação. O verdadeiro significado de reconstrução pode ser um conceito novo, com o qual teremos que nos habituar nos próximos dias, meses e anos. Talvez estejamos pagando a primeira parcela dos males que causamos ao meio ambiente. Precisamos mudar, tentar recuperar ou remediar o que fizemos, mas eu não sei como isso pode ajudar a dona Maria, de 75 anos, que construiu seu cantinho onde conseguia pagar as prestações, faxina por faxina, durante a maior parte da vida. Ela viu sua casa ser levada pelas águas e agora não tem onde morar, nem forças para recomeçar. A propaganda dos gestores públicos é forte, mas poderá devolver a esperança para quem nem acredita mais em política? Poderemos resgatar o real significado dessas duas palavras, esperança e política? Se conseguirmos, talvez possamos construir uma nova casa para dona Maria chamar de lar, antes que o inverno e mais chuvas cheguem à porta do ginásio de esportes onde ela segue acolhida. Para este gaúcho, o gotejar da chuva deixou de ser romântico, muito menos poético, pelo menos por enquanto.

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